Volto no metro ainda olhando para meu velho “o Paradigma Perdido”, livro que comprei por 3euros na Feira da Ladra de Lisboa, já com anotações do seu antigo dono, e inevitavelmente, muitas minhas. Foi o primeiro de muitos de seus livros que me cativou. Agora junta-se a escrita de Edgar Morin. Numa palestra de duas horas e meia, Edgar Morin tratou, sempre com seu olhar complexo, o tema da cultura planetária.
http://culture.univ-lille1.fr/agenda/detail/article/conference-inaugurale-de-luniversite-lille1.html
A dificuldade de debater o tema da cultura advém da complexidade que este termo envolve, é como um camaleão, diz Morin, pois representa muitas coisas, muitas vezes distintas entre si. Podemos perceber a cultura hoje dividida em três culturas diferentes : a Cultura da Natureza (inclusive a humana); a cultura da educação/das humanidades (tradições, ritos, cozinha, música, línguas, etc) e a cultura científica (advindo do conhecimento grego e das universidades). A falta de comunicação entre elas e a suposta superioridade de uma sob as outras consciste num dos maiores erros atuais da humanidade.
A estética surgiu como nossa forma de nos dar ao mundo, porém foi absorvida pela cultura científica e regulou o desenvolvimento da universidade, fatores que promoveram o grande desenvolvimento da cultura ciêntífica, mas também a sua separação da cultura das humanidades, eliminou a subjectividade do sujeito, e fez com que o principal pilar de nossa sociedade atual ficasse separado do próprio sujeito/homem. A enorme compartização do conhecimento nos leva ao que Morin diz ser uma tragédia cognitiva: quando é que estudamos o que é ser humano?
Segundo a visão deste pensador, deixamos de pensar o que somos, o porque vivemos ou como chegamos aqui, para simplificar tudo ao redor de números e fórmulas, com a economia como força alienatória da vida humana. Estamos sobre a dominação numérica, mas não podemos contar a alegria, quantificar o amizade, as relações sociais, (l´amour!) … Esquecemo-nos que somos seres do Planeta Terra, advimos da evolução das primeiras células e carregamos, em nosso organismo complexo, toda a evoluçao da Terra, somos parte da história do universo. Segundo Morin passamos por uma crise da humanidade (e não somente da civilização) que é também momento de oportunidade, e precisamos de mudanças profundas na nossa sociedade e em cada um de nós.
A era global que vivemos bera o perigo da homogenização cultural, mas a mesma tendência à destruição pode ser vista no seu oposto, como a tendência à reciclagem e à mistura, que nos levaria a um mundo ainda mais complexo do que o que vivemos. Por isso atualmente a cultura está numa constante luta entre a originalidade e a mistura. Mistura não é a unificação, é complexificação.
Neste momento, Morin explica sua paixão pelos romances e filmes. Fala sobre como a literatura, a música ou o cinema são importantes para abrir ao mundo a história, as tradições, os ritos de países antes desconhecidos de nossos imaginários. Mesmo as novelas, diz ele. Também declara seu amor ao Flamenco, música e dança tradicional dos ciganos, que estava a beira da extinção quando grupos de jovens espanhóis na Andaluzia o retomaram, o reciclaram e novamente o transmitiram para o mundo. Tal como o jazz. É pela mistura que a cultura sobrevive, e espalha-se.
Retoma então a ideia de que são os jovens que têm a aspiração e produzem a fermentação necessária para mudanças na sociedade, ainda não complementamente domesticados pela super-estrutura sistêmica. E enfatiza a importância da ciberCultura nos dias atuais.
Ao mesmo tempo que permite a comunicação direta entre os diversos grupos sociais (tanto bons quanto ruins – reativos, grupos de pressão, mafiosos, etc), mantem-se como força econômica e política. Amplia as possibilidades de busca livre pelo conhecimento, gerando autodidatas em vários temas, ao mesmo tempo que pode significar empobrecimento da comunicação (já que informação não é necessariamente traduzida em conhecimento).
Morin defende uma reformulação completa do modo de construção do conhecimento, onde o sujeito percebe-se na dualidade entre ser parte do universo e ser um indivíduo único. No qual as disciplinas dialogam e complexificam-se para compreender o mundo que nos forma. No qual as várias formas de construção da realidade são interligadas para entendermo-nos. Um mundo no qual « A poesia recitada par cœur não é algo que se escreve ou se lê, é algo que se vive. É a nossa forma de nos dar ao mundo. ».
Ao terminar, voltou a seu lugar na mesa, recolocou o relógio e aguardou atento pelas perguntas. Minha alegria de vê-lo a uma distância mínima foi a de perceber que ele é como nós, revolucionário, energético quando fala, com brilho no olhar e com um pensamento que brinca com as (inter)ligações. Um sujeito que busca religar os conhecimentos para entender o que somos, que coloca o mesmo peso na ciência, nas tradições, na música e na dança, na dramaturgia e na história. Um sujeito complexo, que nos mostra que o mundo que vivemos é o todo e a parte de nós.
Adorei Rô! Fico emocionada ao ler os escritos dele, e agora, ao teu. Não temos que escolher entre uma leitura de vida a partir do indivíduo ou da natureza ou da sociedade. A vida (e considerando a morte como parte de seu ciclo) engloba tudo – indivíduo, que faz parte da sociedade, que faz parte da natureza. A vida é complexa, não adianta querer reduzi-la… “os sentidos sejam a crítica da razão”, poetizou Leminski. Afinal, os saberes e viveres são complementares – pena que alguns se impõem como única solução válida, enquanto uma possível solução está cada vez mais distante a partir das perspectivas dominantes…
Beijão de saudades imensas!
Mi