A viagem, nunca cessa. Ela continua martelando em sua mente. Você já voltou, reviu a realidade em sua casa. Relembrou velhos momentos. Confortou-se novamente em seu canto. Foi fácil ver sorrisos alegres com sua volta. Mais difícil foi enfrentar aqueles que torceram para que sua escolha fossem os caminhos da vida. E isso também aconteceu. Nunca se volta plenamente ao que se deixou. E talvez aí que a viagem continue também.
A volta não tem volta. São tempos e mais tempos de retomada, de re.pensar. de re.encontrar. de re.tornar ao que foi deixado pra depois. E depois, as vezes, se torna nunca mais. Porque afinal, você mudou mais do que qualquer um. Do que qualquer tempo. Qualquer dia. Qualquer número. Porque não há jeito. Não há trejeito. Não há modelo que modele o que você é. O que você pensa. O que você quer.
Depois de ter sentido a brasilidade. A falta que ela me fez, e o alívio que ela me trouxe. Depois de ter sentindo de perto a grandiosidade da Amazônia. De ter sentindo saudades da minha Terra. Da minha língua. Da minha pátria. Retorno à ela ainda com mais intensidade. Penso e re.penso como pode ser tão bela. Tão gigante. Tão intensa. Um amor pra toda vida. Que aumenta ainda mais quando a distância dos costumes aumenta.
Ficou a experiência. E muitos conhecimentos. Entre eles, a satisfação de ter conhecido um exponente escritor paraense. Benedicto Monteiro. Foi em um dia comum nas ruas de belém. De calor intenso. De intensa troca. Um senhor muito conversador, como os locais costumam ser por lá. Dono de um sebo, conhecia muito literatura. Eu lhe pedi uma indicação. Algum autor local. Se você quer algo bom, disse ele, o meu favorito: Benedicto Monteiro. E logo foi se desculpando porque só tinha um livro dele. Sua biografia.
Antes mesmo de sair do país eu já tinha devorado aquelas páginas. Não conseguia parar. O cara é foda! muito mesmo! Uma daquelas leituras que caminham praticamente por si mesmas. Que te levam por locais desconhecidos, que depois quando se vai conhecer parece que já sabia de algo. Te leva pra outros tempos, outros costumes. Mas tá tudo ali, indo por uma estrada que você mesmo constroi em sua cabeça.
Benedicto Monteiro foi, além de escritor. Poeta. Jornalista. Político. Perseguido pela ditadura. Mateiro. E foi aí um exponencial. Conhecedor da vida amazônica. Tanto que Darcy Ribeiro anos depois declarou: “sua tetralogia – Verde VagoMundo e Minossauro, que se completa com A terceira Margem e Aquele Um – é o espelho melhor que se compôs até hoje para ver a Amazônia“.
Graças a tecnologia em rede, pude nesta semana receber em casa o Verde VagoMundo. Expectativa que estava por isso. A compra foi pelo (ótimo) portal de sebos do brasil, a ESTANTE VIRTUAL. http://www.estantevirtual.com.br/ . Um ótimo serviço para àqueles que, como eu, estão em busca de viagens pelo conhecimento, como antigamente. Àqueles que ainda gostam de folhar um livro, sentir-se aproximar do fim. Ler da primeira a última. E voltar. Re.ler.
É nos sebos que achamos raridades. Novidades. E imagine a tecnologia de se ter um acervo de diversos SEBOS no Brasil inteiro. São muitos volumes que se pode achar. Encomendar. Ler, afinal, o esperado volume. Prefiro este uso da tecnologia do que os recém re.lançados modelos de leitores digitais da Apple. Mas, ainda bem que cada um busca o que quer. Cada um com seus desejos.
Quero compartilhar uma parte deste volume, o qual não consigo parar de ler, me instiga. Me facina. Me faz sentir novamente a brisa do vento amazônico, o som das folhas dançando ao vento. A força da correnteza do rio me levando ao desconhecido. Da prosa mansa do matuto. Da dança quente das caboclas. Do gosta natural das frutas que caem das árvores em nossas cabeças. Da liberdade, da beleza. Da lua e do rio. O grande rio-mar!
“Eu era mesmo assim, seu Major. Não, não era doidicia, não. Eu andava mesmo procurando um pau, um pau que pudesse servir de marco na minha vida. E que ficasse pra pai, mãe, padrinho e namorada, como fiel recordação. Até pensei, em plantar ali mesmo, uma árvore no terreiro. Podia bem ir à cidade e de lá trazer um filho de mangueira. Não, mangueira não. Mangueira, podia morrer no inverno quando as águas subissem. Minha mãe podia até ficar preocupada, pensando no azar. Ademais, mangueira é fêmea, árvore fêmea. Não podia me representar todo inteiro pela ausência. Planta fina da cidade, não servia. Não servia. Tinha que ser mesmo árvore de mato. Um dia, pensei que tinha encontrado: o taperebá. Porrete! Taperebazeiro era ótimo, dava certinho pra plantar no terreiro: bem no canto da casa, de frente para o rio. E tinha muitas vantagens, seu Major: não precisava de semente, nem de muda, nem de filhos: grelava de estaca. (…) mas ô diacho, é que o âmago do taperebá, era leitoso e vermelho: cor de sangue. Não podia inspirar boa recordação (…) não podia ser o taperebá, que ficava lacrimejando de tempos em tempos. O senhor pensa que desanimei? Não. Voltei novamente pra mata, e procurei outra árvore. Uma árvore. No terreiro da casa é que não ficava bem. Ia sair pelo mundo, enfrentar a vida, lutar contra a sorte, sem contar com a proteção nem de mae nem de pai. Mal comparado, eu podia me meter até num igapó ou num chavascal, o que o senhor acha, seu Major? Pensei em revista as árvores para uma nova escolha. Tinha excluído o catauari, porque era esgalhado, e se confundia facilmente com as árvores de seu porte. O taxizeiro, seu Major, tomara que o senhor veja: é um pau bonito! Esguio e forte, de rara folhagem nos altos galhos. Suas flores quando caem, giram como hélices, milhares de hélices, ao sabor do vento. São as primeiras flores que anunciam a vazante do rio. Mas depois lembrei de uma triste inconveniência: é um pau muito cheio de formiga. A imbaúba, nem contava! Apesar das folhas, grandes folhas: brancas de um lado e verde acinzentada do outro, que brilham. – Isso eu sei que brilham tanto na luz da lua como na luz do sol. O Senhor vai ver, seu Major, quando fizer luar: que beleza! É o brilho da folha da imbaúba quando o vento bate. Mas imbaúba, é o tipo de pau bonito mas ordinário: galhos finos de sacaí e tronco oco e cheio de nó que nem bambu. Taperebá, eu tinha decidido: não servia por acausa da casca, que lagrimava sangrando. Eras de pau! Aí, me lembrei do marisarro. Taí o mari-sarro, pensei muitas vezes: quando floria era a árvore mais bonita! Só que depois, perdia as folhas, caíam as flores e ficavam pindurados só os frutos. Eram frutos negros e retorcidos, e ficavam apinhados nos galhos que nem bandos de urubus. Era um pau paresque até por demais agourento.
Na terra firme, eu conhecia muitas árvores que bem podiam ficar como lembrança, só que não grelavam naquelas proximidades onde precisava ficar minha presença. Eu precisava de uma presença viva, que durasse todo o tempo da minha ausência. A canaheira da várzea, por exemplo, chamada de sapucaia, não era como o castanheiro do Pará. A sapucaia, além de ser baixa, esgalhada e fêmea, ficava sempre com os ouriços pendurados até apodrecer. E, quando caíam as pivides, apareciam os buracos, que riam paresque enormes bocas sem dentes, gritando pras distancias nos rios.
Já o castanheiro macho, castanheiro do Pará, esse sim, era o gigante da mata! Tem a copa acima da mais alta árvore da floresta: desafia ventos e tempestades. È o que recebe primeiro as chuvas mais próximas do céu. Também, quando os seus possantes galhos se abraçam com os ventos, toda a floresta sente o duelo dos porretes no temporal! Parece até que as árvores visinhas se abaixam, esperando o resultado da luta entre o pau e o vento, nas alturas do firmamento. É colossal! Lhe juro que é uma coisa terrível de colossal! Agora, quando o bicho-pau vence a luta, que os ventos se libertam dos braços-galhos, então o senhor gosta de ver a enormeidade dos ouriços que se alastram. O castanheiro-homem, esse ri e acha graça do resultado da briga: castanha no chão, princípio de colheita, é a safra. É a safra que começa. Mas a floresta estremecida e violentada, agite inteira, ramos, galhos, flores e trepadeiras, num grito triunfante que sacode a terra e invade os campos, matos e rios, por toda a redondeza. Porém, seu Major, eu nem lhe conto, quando o vento consegue derrubar o bruto gigante da floresta: as entranhas da terra são viradas do avesso. Por quê? Porque o próprio peso da enorme copa, arranca todas as raízes. No chão, o papoco abre uma cratera; e na mata, uma clareira. Confunde-se então seu Major, o esmagamento de troncos, imensos troncos, com tenros arbustos, num terrível massacre de flores e frutos. Não seu Major, o castanheiro não servia, não servia: era grande, grande por demais. (…)”
Nessa escolha natural, nesta imensa diversidade da floresta, nesse conhecer o mato. Vai-se lendo cada página, como se se caminhasse por entre a floresta. Como se navegasse a imaginação pelo grande Rio-Mar. Me faz pensar como os nativos tem uma relação muito próxima com a natureza. Como pode um homem comparar-se com as árvores, com suas características, de forma tão intensa, tão singela, tão sincera. E tão real. E, afinal, pensar: que árvore eu deixaria pra ser a lembrança viva de minha presença. Na minha terra. Na minha casa.
Nunca procurei com afinco essa resposta. Mas me recordo de muitas vezes estar em baixo de um velho pinheiro de minha casa. E de ouvir minha mãe contar que plantou-o quando estava me plantando. Quando eu germinava em seu ventre, ele germinava em seu solo. E juntos, crescemos. Maduramos. Ele demonstrando suas pinhas, eu minhas espinhas. E juntos, chegamos a ser adultos. Experientes com o tempo, com as energias do inverno e do verão. Com as noites de luas cheias, e com as chuvas fortes. Com os visitantes alegres e festivos, e também com aqueles que nos buscavam pra sugar nossa seiva. E juntos envelhecemos, a cada dia. E quem sabe, seja ele afinal, que me faça ter saudades das manhãs de chimarrão e cantos de pássaros.